sábado, 21 de abril de 2007


Prometi-me um destino a todos os apeadeiros, chegar e partir, sempre naquela sonância que se propaga no ar, um pouca-terra pouca-terra que me leva a viajar.


Gosto de entrar no comboio, e esperar que o som das rodas a passar sobre as juntas de dilatação dos carris marquem o compasso dessa entrada noutra dimensão. Não sei de onde surgiu este prazer de viajar de comboio e de o escutar.
No verão, durante aquele silêncio que só a noite permite, é com um sorriso que oiço entrar pela janela, o som dos vagões a passarem lá longe. Viajo com esse som para um dos bancos da carruagem e antes de me recostar, olho uma última vez em redor para ver quem me acompanha nessa viagem. Observo-os, imaginando em que estarão a pensar e consumo os seus gestos como palavras que procuro descodificar. Recordar, o rapaz que sentado à minha frente, me surpreendeu do seu olhar ausente, quando num gesto antecipado abriu o pequeno caixote do lixo, no qual, eu me preparava para deitar um papel. As três irmãs holandesas, que estenderam mapas como mantas onde lhes tracei o destino. A senhora que se preparava para me converter a outra religião, e desviando-lhe a conversa foram duas horas sem invocar o nome de Deus… em vão. O menino que a meu lado adormeceu e se encostou sobre o meu ombro. O homem para quem virei, disfarçadamente, o meu livro evitando que ficasse com um torcicolo. De novo agradecer ao jovem de pernas compridas por este ter cedido mais espaço para que pudesse estender as minhas. Rir do velhote que de headphones cantarolava desafinadamente qualquer melodia. Retribuir caretas à menina que ao colo da mãe reclamava a minha atenção. E finalmente, parar junto do vidro da porta, e de pé, correr o olhar pela paisagem para não perder nenhuma gravura da película destas viagens.

Recuar aos momentos em que caminhei junto dos carris. Dias de Inverno que me apresentaram o quanto era divertido contar e saltar chulipas. Tapar, com a força da inocência, os ouvidos ao som ensurdecedor.
Uma vez o pai perguntou:“Dá medo, não dá? Quando o próximo passar havemos de gritar.”
E gritamos os dois. Gritei de medo e de dor pela força com que me apertou mão, para resistir ao efeito que me sugava, mas senti esse medo de um barulho desmedido por numa vibração que nos percorre todo o corpo.

Foi de viajar de comboio, de descodificar gestos oferecidos e outros reconhecidos, que me surgiu este prazer que escuto no pulsar de vidas que seguem na mesma linha.


Prometi-me um destino a todos os apeadeiros, chegar e partir, sempre naquela sonância que se propaga no ar, esse pouca-terra pouca-terra que me leva a viajar...

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