Não quer que lhe agradeça, talvez porque ainda não percebeu que o meu sentimento de gratidão
não se encerra nele, mas trespassa-o. Verbalizar o obrigada que sinto, liberta-me e liberta para universo um
sentimento bom que não se quer contido. Reconheço a comodidade que é não ter
que escolher o destino. Há lugar para sugestões, no intervalo das suas certezas e a
minha rendição não será fruto do acaso, pois parece-me ser premeditada com base na partilha de uma palavra em
comum: trilho.
Como sempre, vou preparada para os pormenores do caminho. E os pormenores aumentaram à medida
que avançamos no desnível do relevo, assim em jeito de paredes verdes que se
erguem à nossa volta. Será por isto que nos sentimos em casa?
Numa primeira
paragem (Capela de S. Simão) a curiosidade levou-nos a circunscrevê-la rumo um topo com vista para
uma paisagem soberba sobre o nosso destino. Aquela rocha podia ser a chaise longue ideal desta manhã serena
de inverno, onde nuvens e sol acordaram numa coexistência perfeita. Perfeita até
para os registos fotográficos de duas novas lentes. Uma da máquina, que
necessita de atenção para se ajustar e a outra, a da minha alma, que teve mais tempo
para dar atenção ao caminho, neste modo livre de fitas sinalizadoras e metas cronometradas.
a minha preocupação era a chegar a tempo…
… de ver…
… de ver…
foto do G.
Num pico de atracção pelo imenso, quis saber se não dava para
descer logo por ali, ignorando a existência de um qualquer percurso. Era imensa
a natureza. Lá de cima a copa das árvores são como um embrulho de Natal e a minha prenda era o
que estava para lá delas. O ribeiro talvez seja essa fita que guardamos das
prendas que nos são mais especiais. Ele não fez caso da minha pergunta e seguimos de carro
até ao Casal de S. Simão. Chegados à aldeia fiquei sob o efeito hipnotizante do
quartzito que embeleza cada passo que damos. Até eu me senti mais bonita naquele cenário. Dividimo-nos na atenção aos
pormenores desta aldeia de bonecas, atravessando-a num misto de olha-a-aqui e vá-temos-de-seguir. Foi nesta dualidade que passamos das varandas e quintais, de uma única rua para O trilho. Seguimos pelo
singletrack contínuo de sucessivos enquadramentos de uma beleza natural
acrescida pelos retoques da estação húmida. O outono deixou mantos de folhas que nos permitam identificar as árvores circundantes. Ora um manto de
folhas de carvalho, ora de sobreiros, ora de castanheiros, sempre nos seus
tons compreendidos entre o amarelo e o laranja aquecendo a alma de quem passa. Seguimos nesse
silêncio traduzido pela linguagem da fauna e flora envolventes, devidamente
acompanhadas pela passagem da água no leito da Ribeira de Alge.
a minha preocupação era a chegar a tempo…
… de ver…
… de ver…
foto do G.
Quisemos ver e registar e
houve tanto por onde dispersarmos a atenção e a objectiva, aqui, ali e a nós para
perpetuar essa oportunidade. Estava um dia tão bom que até senti calor. Tirei cachecol,
tirei casaco e não tardei a lamentar não ter coragem para as botas e molhar os pés na ribeira. Estava um pouco impaciente com o horário de
inverno e resistia à tentação de querer correr contra o tempo, sobretudo pelo receio da noite se antecipar e me impedir de apreciar os contrastes e paisagens que me esperavam adiante. Mas ele é calma e certeza
de que não nos faltava nada, nem lanterna (para o caso de faltar o tal tempo). Continuei distraída a contemplar o trilho e as suas particularidades. Delas fazem parte inúmeros detalhes, desde a folhagem iluminada de gotículas de orvalho, trazendo a nós uma constante frescura que sabia bem inspirar. Os tons e a forma dos musgos, dos líquens e das trepadeiras que remetiam para as histórias da floresta encantada, daquela que esconde segredos e criaturas que zelam pela sua magia. E eu segui enfeitiçada pela palavra proximidade, a esta natureza enraizada no solo e à nossa que vamos enraizando. No trilho encontramos também duas
cabras estrategicamente colocadas a pastar de forma a desmistificar o meu receio de levar um-chega-para-lá. Não sei se eram meigas que não fui em festas mas eram muito bonitas. Não tardaríamos a passar para a outra margem e e fazer o caminho de regresso. Mais próximos do leito continuámos a ser
avassalados de vistas lindas. Os fetos matizados da cor do fogo, ardiam na margem da ribeira cenários que as repetidas imagens até me deixaram inebriada.
a minha preocupação era a chegar a tempo…
…de ver…
…de ver…
foto do G.
Começamos ao contrário, e
ainda bem que assim decidiu, ficando para o final
a praia fluvial das Fragas de S. Simão. Depois da travessia de duas pontes,
saltitando de uma margem para outra (quem saltitou fui eu que isso não é coisa
de homem!) chegámos a essa cascata principal no meio das escarpas.
Aproximámo-nos o máximo que o tempo nos permitiu e ficámos por ali a escutar a
força das águas por entre as rochas adocicadas desse tom azulado provocado por um sol
recolhido para lá do vale. Divaguei em pensamentos sobre potenciais mergulhos de verão e em como não trocaria um desses mergulhos pela presente vista de inverno no aconchego do casaco que entretanto voltei a vestir. Seguiu-se a grande subida de regresso à aldeia, onde
finalmente nos caíu a noite. Entretanto o quartzito ganhou outra beleza que não
quisemos deixar de registar e ainda tive tempo para dois dedos de conversa com o
pastor que aguardava paciente o regresso de uma meia dúzia de cabras ao curral.
Saí dali com a certeza de que chegámos a tempo... de ver tudo... talvez não tudo-tudo*, mas tanta coisa de me deixar com alma cheia, dessa plenitude que não se quer contida, e por isso liberto-a fazendo-a passar por ti neste meu…
...Obrigada
*este tudo não será pouco sabendo que fizemos uma média de um quilometro por hora...
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